RIO - Ao longo dos últimos anos, a arte contemporânea se tornou um fenômeno no Brasil. Assim, um interesse crescente na produção brasileira vem surgindo de forma notável — produção esta que antes mesmo de ganhar notoriedade aqui já era reconhecida fora do país. Na ponta desta “onda” estão alguns nomes de peso, e um dos que mais chamam a atenção e se torna quase uma grife é o de Adriana Varejão.
A ocupação deste lugar de destaque vem sendo comprovada: em 2011, Adriana se tornou a artista brasileira viva cujo trabalho foi vendido pelo mais alto preço então já pago por uma obra. O quadro “Paredes com incisões à la Fontana” saiu por 1,1 milhão de libras em um leilão na Christie’s (em 2012, o recorde foi quebrado por Beatriz Milhazes, cuja pintura “Meu limão” foi arrematada por US$ 2,1 milhões). Adriana foi, ainda, a primeira brasileira viva a ter um trabalho adquirido por uma instituição de prestígio internacional como a Tate Modern.
Mas é preciso lembrar, em meio ao alarido que seu nome provoca, que a artista de forma alguma é somente um fenômeno midiático e de vendas, mas alguém que vem construindo um dos capítulos mais singulares da cena contemporânea — as subversões realizadas no campo da pintura por Adriana merecem ser estudas em profundidade. Sobre o sucesso, ela mesma o analisa com lucidez:
— Meu foco está na pintura desde o início. É muito bom poder viver bem do próprio trabalho, pois isso reverte a favor da obra. Eu não tenho a urgência da venda da obra. Posso guardar certos trabalhos, ter um acervo em meu ateliê. A pintura é o eixo. Sou uma operária da pintura, sempre fui e sempre serei.
Livros e viagens no processo
Se Adriana se diz pintora, estamos diante de um denso programa artístico desenvolvido desde a década de 1980. É este percurso que poderá ser visto no MAM a partir de quinta-feira, na mostra panorâmica “Adriana Varejão — Histórias às margens”, com curadoria de Adriano Pedrosa. A exposição foi inaugurada ano passado no MAM-SP, tendo pequenas mudanças em sua versão carioca.
O título remete à força da História na obra da artista e ainda à atenção dada às margens, na contramão de um eurocentrismo. O arsenal de referências de Adriana passa pelas histórias do Sul, dos índios, da China, do barroco mineiro, da mestiçagem.
Com 40 trabalhos realizados nos últimos 22 anos, a seleção curatorial foi pensada de maneira a exibir os melhores exemplos de todas as séries que a artista produziu. Há ainda uma primorosa pintura de grande escala feita especialmente para a mostra, “Panorama da Guanabara”.
Visitar a exposição é entrar em contato com um universo em que se cruzam referências. Se a obra é atravessada por forte voltagem visual, sua fonte está nas ideias. Leituras e viagens são partes fundamentais do processo. O tempo gasto no departamento de Medicina de uma universidade em Tóquio para ver a técnica dos irezumis (grandes pedaços de pele inteiramente tatuada cortados de cadáveres e expostos como arte) ou a leitura de autores como Severo Sarduy e Walter Mignolo são tão importantes quanto as horas no ateliê. Da China ao barroco, da azulejaria à iconografia da colonização, da História da arte à religiosa, do corpo e seu erotismo à cerâmica e aos mapas, da tatuagem ao seres aquáticos, vasto é o mundo que lhe interessa.
Tal amálgama de referências faz de sua pintura uma manifestação que está longe de ser aquela voltada somente para si mesma, ou seja, uma pintura que discute o próprio meio.
— Acho maçante quando a pintura só fala dela mesma. Esta discussão já se esgotou. Eu escolhi falar de coisas que estão no mundo — diz Adriana.
Três dimensões
Ao longo do século XX, a pintura ganhou um corpo com três dimensões. A obra do italiano Lucio Fontana é emblemática desta passagem. A pintura de Adriana é herdeira desta superação e nos evoca de forma eloquente este “corpo da pintura”.
O trabalho da artista, desde o início, vem marcado pela presença de dois elementos recorrentes: o azulejo e a carne — uma carne claramente anedótica, teatralizada. A série de trabalhos “Ruínas de charque”, por exemplo, nos revela mais uma vez o encontro destes dois elementos. Mas se azulejo e carne encontram-se presentes em obras que datam desde 1995, nas quais já existia um claro movimento “para fora” — como no caso das “Línguas” e das “Azulejarias em carne viva” — será com as “Ruínas” que, pela primeira vez, as pinturas saem da parede para ganhar o espaço, dialogando com a escultura e a arquitetura.
Tais obras são espécies de esculturas/pinturas em forma de ruínas, revestidas por azulejos. No interior, em contraste com a superfície plana e geometrizada do exterior, encontramos a representação da carne de charque. No lugar do cimento, carne vermelha.
Severo Sarduy apontou a substituição como um dos procedimentos característicos da estética barroca. Esta substituição, dependendo de quais elementos coloque em funcionamento, não opera tão somente uma permutação neutra. Realiza, isso sim, um desvio na significação original e estabelece uma nova. As imagens das ruínas, por sua vez, são a transfiguração de um tempo inacabado.
Tempo e erotismo: dois elementos constantemente ativados por Adriana. A experiência do tempo nas cidades do Novo Mundo é descrita com precisão por Claude Lévi-Strauss (outro autor importante para a artista/pesquisadora) no capítulo dedicado à cidade brasileira de São Paulo de seu livro “Tristes trópicos”. Tal pensamento encontra sua síntese na passagem: “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína.” Este tempo em que as coisas não se concluem é o da experiência do tempo de um Novo Mundo desprovido de tradição. E será justamente da história dos ganhos desta ausência de que se vale o trabalho de Adriana. Ela realiza um livre jogo com o tempo e a História na sua pintura desde trabalhos iniciais, como “Filho bastardo” e “Passagem de Macau à Vila Rica”.
Se em uma primeira fase temos uma obra mais voltada para uma articulação crítica do passado, hoje nos deparamos com uma visualidade mais depurada, na qual o tema da colonização sai de cena, mas permanecem elementos como o corpo, a história, a teatralizacão do mundo e o erotismo. Uma série mais recente como a das “Saunas” não deixa de evocar o corpo na sua ausência ou nos seus rastros, como no quadro em que somente um chão ensaguentado revela sua passagem.
Esta generosidade da forma encontrada no trabalho de Adriana leva até a longa tradição barroca, da qual sua pintura é uma herdeira contemporânea.
Mas os mais atentos podem se perguntar neste momento: não estávamos justamente falando do fim da tradição? Como então é possível esta artista do século XXI ser uma herdeira de uma longa tradição estética? De que forma ela poderá se relacionar com a tradição barroca hoje? Também aqui Adriana opera uma reinvenção, uma inversão de sinais com a sua herança. Nas suas pinturas testemunhamos uma transmutação do elevado, do excelso, do ouro, dos anjos, de tradicionais obras barrocas, para um universo barroco agora selvagem, voraz, vermelho, erotizado, em carne viva.
“Adriana Varejão — Histórias às Margens” é uma exposição de pintura que revela como esta que é a mais antiga das linguagens artísticas pode ser palco de uma teatralização que subverte o próprio meio e, num gesto antropofágico, devora o mundo à sua volta e o devolve transfigurado, repleto de eloquência visual e verticalidade conceitual.
Fonte : http://oglobo.globo.com/cultura/destaque-na-arte-contemporanea-adriana-varejao-ganha-exposicao-panoramica-no-mam-7301997
Mais :
http://oglobo.globo.com/cultura/confira-detalhes-da-mostra-adriana-varejao-historias-as-margens-7302180
Fonte : http://oglobo.globo.com/cultura/destaque-na-arte-contemporanea-adriana-varejao-ganha-exposicao-panoramica-no-mam-7301997
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